quarta-feira, 26 de março de 2008

A banheira Branca

A banheira Branca antiga no centro da sala.
manhã de domingo, claridade entrando pelas janelas.

Uma casa incomum, um lugar escondido na serra e o silêncio que dói os ouvidos, uma mulher sozinha.

A entrada da casa era pela perna do L, duas portas, de madeira maciça, no centro delas, a altura dos olhos, duas janelinhas de vidro, um pequeno gradil de ferro. Abertas as portas, o pé direito alto, uns sete metros, do lado direito a escada com degraus "flutuantes" levava ao segundo andar, estruturas de ferro aparentes.

Ao lado esquerdo da entrada um cabideiro para colocar os casacos, mais adiante dois sofás um branco e outro preto, em ambos, almofadas vermelhas, um de frente para o outro, deixando livre o corredor, vinte passos sem nenhum objeto, chegamos ao encontro dos dois retângulos, neste vértice, ao lado esquerdo a parede inteira de vidro e a frente dela um piano de cauda, preto, fechado, e empoeirado. O único objeto que ela não tocava, não limpava e não esbarrava, apenas olhava, todos os dias ao se levantar. Ao lado esquerdo era possível avistar a outra parede em vidro. Pé direto mais baixo em função do segundo andar. Cinco degraus abaixo um vão de uns 6 metros de largura onde ficava a tal banheira, atrás dela uma estante cheia de livros, nenhum quadro nas paredes, apenas uma tela em frente a banheira, sem moldura, fixada com pregos, há tempos está ali, fora preparada por ela que dizia não ter achado a tinta certa para pintar, o que na verdade era uma grande mentira, faltava lhe a inspiração, faltava lhe a cena perfeita.

Cinco degraus subindo, era possível atravessar a casa, e chegar a cozinha, entre os cinco degraus descendo e os cinco subindo, onde a estante, a banheira e a tela se encontravam, formava se um buraco que invariavelmente quebrava o acesso direto a cozinha. Pois bem, passada a banheira, cinco degraus acima estava a cozinha com uma geladeira antiga, um fogão moderno, desses de resistência e uma mesa enorme, suas seis cadeiras, acompanhando a parede frontal a tal inteira em vidro. Logo, imaginando um retângulo, temos nas duas paredes opostas janelas de vidro, onde era possível visualizar da cozinha o piano, mas não podia se avistar a banheira, escondida no vão entre os dois comodos que mais pareciam um só.
Nos dias de sol, aquele buraco refletia como as miragens do deserto, como se fosse um lago.
E ela ao olhar, saía porta a fora a procura do que fazer.
Nesses dias, ordenhava vaca pela manhã, cuidava dos cavalos, inventava afazeres como reconstruir a ponte que levava a cachoeira, fotografava borboletas, selava o cavalo, subia no alto da montanha e verificava as cercas. Cuidava da horta a tarde, colhia pitangas, fazia tudo, e só retornava a casa quando o úlimo raio forte de sol se retirasse e desse lugar ao magenta no céu.'As vezes esperava do alto da pedra do sétimo véu, a cachoeira mais distante da casa, os tons de cinza brotarem e tomarem o teto com estrelas para retornar.

Assim, chegava em casa, deixava as botas de lama na soleira da porta, e subia direto para o quarto.

Banho frio, pantufas quentes, camisola de cetim, e o olhar a janela, do teto ao chão, que emoldurava a cama de ferro, o colchão em lençóis de algodão 140 fios, sem bordados, sem cheiro, apenas brancos e extremamente esticados, quatro travesseiros, sendo dois mais baixos, debaixo de um, o sachet de camomila. Da cama se avistava todo o bosque de araucárias, umas nove no total, uma pequenina, e outras oito em diferentes tamanhos, mas todas muito mais altas que aquela. Agora poderia descer, fazer um chá, pegar um livro, preparar algo para comer e aquietar.

As cortinas de organza fina, brancas, bege clarinho e tons variados de lilás, exatamente iguais as da sala, esvoaçavam com o vento que batia após a hora do almoço. As janelas eram abertas todos os dias nos mesmo horários, pela manhã antes do sol nascer por inteiro, fechadas e novamente abertas após o almoço até o fim de tarde quando eram fechadas para que os mosquitos não entrassem.
Nas noites de calor e nas noites frescas também eram abertas, e assim permaneciam até o dia seguinte, antes do sol nascer.

Os dias e as noites se passavam de acordo com os reflexos casa. Através deles, o ritmo de atividades mudava.
Dias de sol intenso e miragens, atividades externas e fuga, dias normais, escrever seu romance, taças de vinho tinto, dias de muito frio, banhos longos na banheira, chocolate quente com rum e lareira a noite toda.
Quando o frio realmente apertava, ela lembrava que estava só.
Já no calor, enlouquecia.

Sábado a noite, chovia, do alto de seus ombros era possível avistar as gotas que mais pareciam pedras de sal grosso, o barulho no telhado avisava, a noite que estaria por vir.
Deitada, com o teto a imaginar quantas pedras de sal poderiam furar o cimento, passava o tempo desenhando na mente o formato de cada gota que caía, as via rasgando suas pernas, os olhos semi cerrados se protegiam.
Sentia o formigar no peito, como quando se entra numa cachoeira cujos jatos d'água modificam a forma da carne e adormecem a alma num momento de agonia curta e relaxamento profundo. Alternava a brincadeira, gotas que infernizavam, pingos que acariciavam.

Ele chegou, no meio da brincadeira dela, mas não parece ter atrapalhado, os faróis piscam, desliga o motor e ela desce correndo as escadas.
Casaco nas costas e guarda chuva nas mãos, sai porta a fora.
Ele com um sorriso desconfiado nos olhos tem a face imóvel, a linha da boca, escaldada por uma superficie rija.
Marcada pelo tempo, do tempo que não se viam, do quanto não se sentiam e de tudo que não se sabiam.
Entram os dois, mudos. Os nervos escondidos, ramificados como árvores, agora mostravam a seiva cristalizada, o peso dos anos.
Sem saber o que oferecer e onde colocar o jogo de ombros, do colo agora exposto em sua camisola, ela se enverga para frente, quase corcunda, tentando esconder os seios, tentando olhar através das costas, o que claramente não era possível, de costas, prepara um café.
Ele indaga em pensamento, desde quando ela começara a tomar café? E até mesmo fazê - lo. - Ela nunca soubera.
Ela, olhar baixo, atravessado, a espera da reação dele.
Ao primeiro gole o silêncio é quebrado.
O café estava pior do que antes.
E ambos desatam a rir, a falar desesperadamente, palavras desconexas, frases rudes, se xingam.
Ela parte para cima dele atacando com socos e ponta pés. Derrubam todos os potes da mesa, a moringa de água gelada cai no chão e antes que acabem com a cozinha inteira. Param, se olham nos olhos estranhos, não se reconhecem.
Silêncio.
Começa tudo novamente, o não saber onde colocar as pernas, a testa levemente franzida, o seio escondido.
Seus cabelos, agora mais ralos ainda escondem a face masculina e incógnita.
Ela que deixara de fumar, acende um cigarro, ele se encarrega de abrir o vinho.
Não sabe onde ficam as taças. Abre os armários, o que invariavelmente a irrita.
Três garrafas de vinho.
O tempo necessário para o acerto de contas no vazio do ar.

Começou pela cozinha, o cheiro, tocando e derretendo,
sobre os olhos, os cabelos,
pelas coxas molhadas,
lambendo as feridas do tempo e o umbigo dele
a carne branca,
Na escada,o polegar molhado na boca,
dedos ávidos
As unhas cravadas, o sexo
o sangue quente
envolvidos por horas e horas
os rostos virados, sem palavras, só sussuros,
Ela precisava gritar, sem testemunhas, só o êxtase e o amanhecer.

Nada nunca, tinha sido tão vulgar, quanto os olhares dos dois.

Nos lençóis o cheiro de sexo

Na cômoda da sala, um móvel pequeno, verde água, com várias gavetas e puxadores em formatos variados, mas todos com borboletas, ou na forma ou no desenho. Umas quatorze borboletas coloridas. As cortinas balançavam e traziam borboletas amarelas e outras azuis, invadiam a casa. Aquelas aprisionadas no móvel, voaram.
Agora todas as cores dançavam uma sinfonia, entre as cortinas lilás, brancas e beges.
Era a cena da tela que há anos ela esperava.

A banheira Branca antiga no centro da sala.
manhã de domingo, claridade entrando pelas janelas.
reflexo no vão,
assim, ao som do piano tocado por ele,
nos ouvidos debaixo d'água, a voz grave e rouca
ela resolveu se matar.
As borboletas pararam de dançar,
apenas os pêlos púbicos e os longos cabelos dançavam na água.

Maíra Knox

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